Textos



Texto premiado pela FNLIJ: O dia em que enxerguei Maria

Encontrava-me numa casa confortável, beneficiando-me de uma pensão significativa, fruto da minha viuvez precoce. Meu marido era um diplomata.
         Lembrava-me dos dias de anfitriã. Delicadamente recebia os ilustres convidados, deixando-os à vontade no ambiente aconchegante que fazia questão de preparar pessoalmente.
         Tempo bom aquele, tempo de aprendizado.
         A maturidade tinha me presenteado com a paciência e reflexão. Minha mente trabalhava dia e noite com a possibilidade de sair da minha zona de conforto. Utilizar minha experiência, meu intelecto para fazer algo que enchesse meu coração de gozo, simplesmente pelo prazer de fazê-lo.
         Convites e mais convites inundavam a minha escrivaninha, deixando-me insatisfeita, indecisa e incompleta.
         - Leia um, dona Sofia, vai ser bom pra senhora. – disse Maria, uma empregada de minha confiança.
         Num impulso peguei um convite envolto por um envelope lilás e olhando nos olhos simples de Maria, indaguei:
         - Leia este!
         - Não senhora, não faça isso comigo não...
         Maria enrubesceu, atrapalhou-se e num gesto incompreensível se retirou do escritório, deixando-me intrigada com sua atitude.        
Ri do seu jeito desconsertado, achei que era pura vergonha.
À noite, deitada em minha cama, lembrei-me da cena de Maria assustada com a possibilidade de ler um convite.
         Há anos ela limpava minha casa, sorria com a alma aberta e conversava de assuntos diversos numa intelecção, que me assombrava conceber a possibilidade de minha miopia não enxergá-la.
         No dia seguinte, intrigada com a dúvida que pairava sobre a minha cabeça, chamei-a para uma conversa simples e direta.
          Os olhos amêndoas, caídos com a idade, olhavam os meus. Percebi sua pupila dilatar e um suspiro revelou que tinha algo a dizer.
         Deixei-a à vontade e  Maria, timidamente, confessou a sua ignorância com as letras.
         Naquele momento meus olhos se abriram ao perceber a realidade de nosso país bem embaixo do meu nariz.  
         Meu falecido marido era um exímio leitor, minha biblioteca particular contemplava obras clássicas e muitas outras. E ao meu lado estava um ser humano incapacitado de saborear, de sonhar, de viajar e ser levado ao êxtase e delírios, frutos da leitura.
          - Sente-se nesta poltrona. – disse apontando para uma poltrona em frente a minha.
         - Ai senhora, tenho vergonha. – cabisbaixa, murmurou Maria.
         - Não tenha.
         Virei meu corpo rapidamente e peguei um livro que estava em cima de minha escrivaninha. Estava relendo aquele livro por puro gosto.
         - Veja Maria, este livro foi escrito por um autor chamado Machado de Assis. O nome do livro é Dom Casmurro.
         Maria riu, colocou a mão na boca para disfarçar a empolgação que sentia ao ser apresentada ao escritor Machado de Assis.
         Aproveitei sua descontração e comentei que ao ler Dom Casmurro, a maior dúvida era se Capitu, a personagem da história, tinha traído ou não Bentinho, outro personagem, o próprio Dom Casmurro.
         - Nossa!
         A expressão saiu naturalmente quando comentei sobre a trama do livro.  
         - A senhora falando assim, até eu fico com vontade de saber. – escapuliu um desabafo.
         - Pois bem, Maria! Vamos entrar nesta história juntas. Quem sabe agora eu a entenda melhor? Posso ler? – pedi o consentimento à ela.
         - Ai senhora, vai dar um trabalhão. A senhora é ocupada demais pra fazer isso pra mim.
         - Quer ou não quer?
         - Quero.
         - Pronto.
         Naquele dia Maria abriu os ouvidos e o coração. Comecei a leitura.
         Parava quando percebia um ponto de interrogação dançando em sua testa. Explicava o significado das palavras desconhecidas por ela e continuava.
Matriculei-a em um curso de alfabetização para adultos, mas a leitura compartilhávamos juntas. Todas as tardes íamos até o escritório, lá abria um livro, depois outro até o dia em que Maria leu para mim. Chorei. Uma leitura truncada, vagarosa, mas encharcada pela emoção, pelo deslumbre da descoberta do mundo.
Os dias correm como as águas dos rios.
Um dia, encontrei Maria, procurando um livro, mas sem êxito frustrava-se.
- Maria, que livro pretende ler?
- Dona Sofia, aquele que me mostrou outro dia: do bruxinho.
Sorri, dei alguns passos, afastei alguns livros e enfim encontrei Harry Potter.
Ao ver o livro, a alegria brotou naturalmente no rosto dela.
- Vou ler esse livro pra minha netinha de oito anos!
Maria não parou de ler, de estudar, de crescer... E eu consegui curar minhas feridas, apenas tirando a cegueira impregnada em minha alma. O sentimento de gozo, que outrora buscava, foi preenchido ao compartilhar a leitura com Maria.    

  
Texto: O olhar vago da mulher


A mulher de olhar vago, sentada na cadeira verde de pés metálicos, via nubladamente crianças correndo de um lado a outro na pequena casa, onde morava. Os gritos estridentes tilintavam seus ouvidos, desejosos de não escutá-los. A mente outrora sã, atordoava-se com a impaciência entre irmãos.
            Um berro sobressaltou-se aos outros e logo um dos filhos veio a reclamar de um irmão mais aborrecido ainda. Os olhos da mulher ainda vagavam e os ombros pesavam à medida que as reclamações aumentavam.
            O mesmo peso que derrubavam seus ombros era estampado nos traços de seu singelo rosto de meia idade desconsertado com a realidade.
Olhos claros, profundos e desanimadores buscavam o que antes os faziam luzir, mas a impotência na busca deixava-os completamente indeterminados.
A insatisfação abundava-lhe o peito. O indeciso olhar estampava algo a ser desvendado, na miopia revestida de angustia.
Outro grito, curto e alto, inundou o ambiente compacto, porém o olhar irredutível não se alterou. Mais um grito forte, muito forte. O vale da solidão permanecia vago.
A rotina da casa se desenrolava naturalmente. As rusgas entre irmãos se dissolviam. À medida que o tempo passava a confusão acabava e o olhar continuava vago.
O telefone tocou. Uma voz, ao longe, sibilou um nome. O aparelho foi passado de mão em mão, do filho maior ao menor.
- Mãe...  insistiu um dos filhos.
O olhar flutuava e o telefone foi desligado.
Por alguns momentos a casa aquietou-se e ouviu-se apenas um farfalhar de lençóis. Os pequenos adormeceram sem perceber a tristeza do olhar.
Da cadeira verde de pés metálicos, a mulher de olhar vago levantou-se.  
    

   Texto: O leite derramado           

Dona Maria labutava o dia inteiro com os afazeres domésticos e cuidava de dois filhos pequenos, um de três e outro de dois anos, mas sua barriga já dava sinal de outro bebê a caminho.
            Antes do sol raiar, seu marido, João, já estava na estação de trem a caminho do trabalho. Viajava duas horas no trem lotado, depois uma hora de ônibus até chegar à lojinha de aparelhos eletrônicos usados de que era sócio. Ao findar o dia era a mesma coisa, uma hora de ônibus, duas horas de trem. Chegava em casa depois das nove horas da noite, porque antes passava em um boteco que ficava duas ruas acima de sua casa. Quando entrava em casa suas pernas já bambeavam por conta das cachaças que havia bebido.
             Dona Maria que tanto trabalhara durante o dia, caprichava no penteado, dava banho nas crianças, deixava a casa arrumada e o jantar pronto só para esperar o marido chegar, mas todo dia era a mesma coisa, seu João passava reto e nem reparava na mulher e nas crianças. Corria para o banheiro e lá vomitava até dizer chega, depois caia na cama fedido como um gambá e dormia sem pestanejar.
            O rastro da chegada do marido se via no banheiro emporcalhado e no mau cheiro que impregnava a casa inteira.
            Uma vida sofrida, uma vida cansada, uma vida cheia de decepções, assim vivia dona Maria, que já estava se acostumando com a indiferença do marido por conta do vício.
            O vício de se alcoolizar fazia com que seu João desprezasse a família, nem sequer dava o mínimo necessário para o sustento da casa. Eram seus pais que sentiam compaixão dos netos, levavam, sempre que recebiam a aposentadoria, alguns gêneros alimentícios para o sustento das crianças.
            As crianças acordavam logo cedo e diziam simultaneamente:
            - Mamãe, mamá.
            Queriam mamadeira. Dona Maria procurava pela casa alguma moeda perdida para comprar o leite e saciar a fome dos filhos. Depois de achar uns trocados, silenciosamente contava e dizia:
- Dá somente para um litro de leite.
Ela balbuciava essa frase, enquanto olhava para os dois filhos que repetiam sem parar.
- Mamãe, mamá.
            Pegava as crianças, uma no colo, praticamente sentada em cima da barriga de sete meses de gestação e o outro segurava pela mão. Seguiam até a padaria a fim de comprar um litro de leite de saquinho. No caminho de volta, dona Maria continuava com a criança no colo e a mesma mão que carregava a criança também carregava o saquinho de leite, a outra segurava o menino.
            De repente o saquinho de leite escorregou e caiu no chão. O leite escorria pela rua e dona Maria parecia não acreditar no que via. Só conseguiu sentir angústia diante de sua impotência. E num gesto espontâneo, com toda sua força, deu um pontapé em uma pedra, que voou longe, depois exclamou:
- Meu Deus, o que eu vou dar aos meus filhinhos!
Na mesma hora, quando olhou para o chão viu algumas moedas que de certo estavam embaixo da pedra. Depressa se abaixou para pegá-las. Ao contá-las reparou que tinha o valor equivalente para comprar dois litros de leite.
            Rapidamente voltou à padaria e comprou o leite.
            Naquele dia seus filhos tiveram o leitinho sem precisar acrescentar água para render, isso por conta de um pontapé naquela pedra.
            Os anos se passaram... A vida de dona Maria melhorou, as crianças cresceram, seu João afiliou-se em uma igreja e até parou de beber.
            Embora o tempo tenha passado, um episódio que dona Maria nunca esqueceu foi os instantes de desespero no dia que viu o leite derramado, as moedas encontradas na mesma hora, que para ela foi a reposta imediata a sua prece.